Entre o porto e o abismo
O navio ancorado é metáfora da existência domesticada. Limpo, inteiro, imaculado — e inútil. Seu valor não está na aparência preservada, mas naquilo que é capaz de atravessar. O mesmo ocorre com o sujeito que evita o desconforto, as rupturas, o imprevisível. Como disse Nietzsche, “quem não quer afundar no mar da existência, também jamais beberá de suas profundezas”.
A sociedade contemporânea transformou o conforto em virtude. Conforto emocional, conforto moral, conforto intelectual. Mas toda virtude que paralisa, que estagna, deixa de ser virtude e se torna prisão. Kierkegaard já alertava sobre o desespero silencioso que habita aqueles que vivem uma vida “segura”, porém inautêntica. É o desespero de quem nunca ousou ser o que poderia ter sido.
Há uma estética do controle por trás da ilusão do porto. Uma necessidade constante de previsibilidade, de mapas, de garantias. Mas a existência é, por natureza, incerta. E só quem se lança ao mar aprende a dançar com o caos. Como dizia Camus, o absurdo da vida não deve ser motivo de fuga, mas de enfrentamento. Ser livre é, antes de tudo, aprender a navegar mesmo sem bússola.
A inquietação é um sinal de que ainda há vida. A dúvida, um indício de que ainda pensamos. O desconforto, uma provocação para o salto. O filósofo Bauman chamou nosso tempo de “modernidade líquida”, um tempo em que tudo escorre pelos dedos — mas paradoxalmente é um tempo onde muitos insistem em se manter sólidos, firmes, mesmo que imóveis. Há algo de trágico nesse apego à forma em meio à fluidez do mundo.
Não há processo de individuação sem ruptura. O velho precisa ruir para o novo emergir. Como ensina Carl Jung, a realização do self exige atravessar a sombra, enfrentar os medos e desconstruir máscaras. O mar é esse espaço simbólico do enfrentamento — das tempestades internas, dos monstros imaginários, das correntes invisíveis que nos habitam.
Mas navegar exige perder o chão. E não há nada mais assustador para o ego do que abrir mão do controle. A maioria prefere rotinas previsíveis a jornadas transformadoras. Prefere repetir hábitos a ressignificar a própria história. Como se manter-se intacto fosse mais importante do que tornar-se verdadeiro.
A armadilha do porto está na sedução da segurança. Mas a segurança, muitas vezes, é só um outro nome para estagnação. E como escreveu Pascal, “toda a infelicidade dos homens provém de uma única coisa: não saber permanecer em repouso em um quarto”. O problema é que, ao fazer isso por tempo demais, o repouso se torna ruína. O conforto torna-se cárcere.
Zarpar, portanto, não é luxo. É necessidade. É gesto existencial. É decisão ética diante do absurdo. É o único modo de se colocar em movimento rumo a uma vida que faça sentido — ou ao menos que seja digna de ser vivida. Afinal, como provocaria Heidegger, não estamos no mundo para apenas “estar”, mas para sermos lançados no tempo, para o projeto, para o vir-a-ser.
Não há garantia alguma de que a travessia será pacífica. Aliás, quase sempre não será. Mas há beleza no risco. Há potência na vulnerabilidade. Há verdade na queda. Viver com autenticidade é aceitar que o naufrágio é parte do percurso — e que, às vezes, é justamente dele que emergimos mais inteiros.
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